Susana
Pinta pintava. Quer dizer, pinta. É pintora de quadros. Em especial
de naturezas mortas, com grande apetência para frutas e legumes. Já fez,
aliás, várias exposições, e até ganhou um prémio com a pintura de um
quadro pincelado com nabos e a respectiva rama. O concurso realizou-se
na sua terra, mas por azar a Junta de Freguesia da aldeia foi assaltada
no dia anterior à entrega dos prémios, e Susana Pinta acabou por ficar
sem o galardão, substituído à última da hora por um cabaz de frutas e
legumes, cedido por agricultores locais, para compensar a vencedora.
Susana
Pinta iria participar noutro concurso. Desta vez com a pintura de um
melão. Procurou durante vários dias o melão com melhor aspecto em todo o
lado. Encontrou-o e reproduziu-o esmeradamente numa pintura muito
autêntica. De tal maneira que, quem olhasse para o quadro, parecia só
faltar o cheiro e o toque do melão. O concurso iria realizar-se numa
galeria no Bairro Alto, em Lisboa. Mas Susana conhecia mal as ruas da
capital. Por isso, enganou-se no caminho e e em vez de chegar ao Bairro
Alto pelo lado do Chiado viu-se ao fundo da mais que íngreme Calçada do
Combro, no lado oposto.
Mas
não era uma subida íngreme em escorregadia calçada portuguesa que a
faria afastar-se da candidatura a um novo prémio de pintura. Embora,
desta vez, não estivesse muito confiante... Susana até confidenciou ao
namorado, que a fora ajudar a carregar o quadro emoldurado, que estava
com um pressentimento que "iria apanhar um grande melão" no concurso. Ao
que o namorado respondia para ela ficar tranquila, que o seu 'Sexto
Sentido' nem sempre funcionava, e que com o seu currículo era impossível
"apanhar um melão".
Manuel
Paquete era estafeta. Tarefeiro. Paquete, pronto! Trabalhava numa
empresa no Largo do Chiado mas andava quase sempre na rua. Nesse dia já
passara várias vezes em frente a uma mercearia que ficava mesmo no cimo
da Calçada do Combro. Nos caixotes de fruta, havia um melão que reluzia à
luz de Lisboa. Embora tivesse um ordenado muito baixo, o 'Sexto
Sentido' de Manuel Paquete dizia-lhe que aquele melão ainda seria dele.
Tanto pensou que decidiu agir. E quando saiu do trabalho ao final da
tarde, foi até à mercearia, e suspirou de alívio: "Felizmente, não o
venderam!", articulou para os seus fechos-éclairs, só pensando no
momento em que iria chegar a casa, pegar na grande faca que a avó lhe
deixara em herança, e dar um golpe de alto a baixo ao longo daquela
casca branco pérola... Apalpado o melão, e confirmada a sua aprovação,
Manuel Paquete envolveu o fruto enorme com todo o carinho e com algum
esforço levou-o junto da caixa. "Quer saco? São 10 cêntimos!". Ele mal
pensou e respondeu de imediato que não. Levaria o melão na mão, por
vários motivos: poupava o dinheiro do saco, e mostraria aos colegas e
superiores que passavam por ali àquela hora que não era assim tão
zé-ninguém, e que também sabia escolher e comprar um bom melão.
Saiu
da mercearia com o grande melão nas mãos. Estava uma tarde de calor. As
pedras da Calçada do Combro reluziam ainda mais que a casca do melão. A
Calçada à Portuguesa era linda, pensou Manuel Paquete, mas mais lindo
era o melão que ele acabara de comprar. E melhor ainda seria o momento
em que iria degustá-lo. O seu 'Sexto Sentido' tinha funcionado, e ele
levava ali algo que tanto desejara ter.
Por
ser Verão e o Sol começar a descer lentamente no horizonte, as pedras
da Calçada do Combro estavam plenamente iluminadas. De tal maneira que
olhar para o chão era quase o mesmo que olhar para o Sol: ficava-se
encandeado. E caminhar encandeado numa calçada íngreme como aquela não
era o mais seguro. Mas o tarefeiro fazia da Calçada do Combro o seu
caminho de todos os dias e até falava com as pedras, quase conhecendo-as
uma a uma, sabendo onde estava uma mais saliente ou outra mais
inclinada. Mas quando se carrega um objecto redondo sem pegas e com um
peso apreciável, até os locais conhecidos podem pregar partidas: e foi
então que Manuel Paquete tropeçou numa pedra onde um pedaço de calcário
se lembrara de se lascar sem avisar, e a sola gasta do sapato comprado
na loja dos chineses não foi capaz de manter o contacto permanente com o
chão, deslizando alguns centímetros em parceria com outras pedras de
calcário.
Na
mão direita, amparado pela mão esquerda, o melão premiado por ele
próprio oscilou, rodopiou, voltou a roçar os dedos e as linhas da palma
da mão, levitou como coxas de galinha numa concentração vudu, e
finalmente abraçou a teoria de Newton, entrando em contacto com as
pedras quentes e reluzentes, alinhadas lado a lado. Mais rápido do que
meio pestanejar, Manuel Paquete pensou que já não valeria a pena usar a
faca que a avó lhe deixou como herança porque o melão iria abrir pelo
lado mais fraco, poupando-lhe trabalho… Mas, qual quê? Roliço, o melão,
qual bola de râguebi, bateu e – sabem como fazem aquelas pedrinhas que
se mandam na praia e que vão saltitando na água? - pois, o melão começou
a saltitar e, qual carrinho de rolamentos descendo uma avenida, foi
tomando balanço, fintando carros e gentes, de uma maneira de fazer
inveja a Cristiano Ronaldo.
A
começar a decalcar a Calçada do Combro vinha Susana Pinta, a iniciar a
subida com o quadro emoldurado da natureza morta com que ela esperava
ganhar um prémio. Resmungando com o 'Sexto Sentido' de que algo iria
correr mal, Susana levantou os olhos para a Calçada que não conhecia o
termo horizontal, quando viu a algumas dezenas de metros um objecto que
já fora perfeitamente arredondado, mas agora qual pneu branco
desgovernado e deixando vestígios pelo percurso... Sabem aqueles
momentos em que vamos numa rua na direcção de outra pessoa e que tanto
nós como a outra pessoa querem dar passagem mas acabam por se enfeixar
uma na outra, não sem antes fazerem intenção de virar para um dos lados,
depois para o outro? Pois, Susana Pinta e o melão desgovernado fizeram
esse jogo por brevíssimos pestanejares, mas nenhum deles se conseguiu
desviar a tempo: o melão – ou o que restava das talhadas que não
chegaram a ver a faca que a avó de Manuel Paquete lhe tinha deixado como
herança – escarrapachou-se na cara de Susana, não sem antes ter
atingido e atravessado o seu "primo" pintado. Susana caiu para trás e a
moldura enfiou-se na sua cabeça, como se costuma ver nos desenhos
animados. O namorado de Susana ficou em pânico, mas a pintora não se
magoara. E quando lhe perguntaram como se sentia, ela simplesmente
respondeu que o melão, que se escarrapachara na sua cara, tinha um sabor
misto a óleo e doce... e que viesse o presunto!
1 comentário:
JAG
isto está hilariante e muito bem escrito...
rindo...
:)
Enviar um comentário