"Bom-dia, Dona Maria"
"Bom-dia, meu menino, vais para a escola cedo"
"Gosto de chegar cedo para comer o lanche e brincar um bocadinho"
"E a tua mãe, está boa? E a tua irmã?"
"Estão boas, obrigado, vou andando, até logo!"
"Até logo, meu menino, cuidado ao atravessares a estrada"
E a Dona Maria ficou ao portão da casa, onde estava quase sempre, acompanhando o vai e vem dos meninos e das meninas que passavam a pé para a escola que ainda ficava longe. Havia sempre bons-dias, copos de água para os mais sedentos e de vez em quando até bolinhos feitos num forno de lenha de onde soprava um aroma a alfazema.
O tempo passou, o caminho alcatroou e os meninos e as meninas continuavam a passar por ali a caminho da escola mas agora dentro dos autocarros ou nos carros dos pais. A Dona Maria a pouco e pouco foi escasseando ao portão, este passou de madeira a metal e a Dona Maria viu-se rodeada de cogumelos de cimento. Recolheu-se à lareira com uma manta de lã nos joelhos. Nunca mais nenhum menino lhe pediu um copo de água e o forno também deixou de crepitar. Só a filha e o filho, mais os netos de vez em quando por lá passavam.
O menino que entretanto cresceu até ser homem continuou a passar por ali mas com outras funções e outras prioridades. Recordava os bons-dias, os recados, os copos de água, os bolinhos e o cheiro a alfazema... "Um dia vou encostar o carro, sair e fazer uma visita embrulhada num abraço", pensou o menino que crescera até homem. Pensamento sempre adiado porque a vida é um corre-corre... mas um dia iria parar, cruzar o portão e levar uma lembrança à Dona Maria. Afinal ela era avó do Mário e do Rui, amigos de tantas viagens e aventuras.
O dia da visita seria amanhã, no máximo depois de amanhã... mas o menino que crescera até homem mas que guardara na memória pedaços de criança, chegou tarde ao portão... ficou com sede e parou para pedir um copo de água mas as almas têm mãos apenas para carregarem pedacinhos de memórias ... a Terra ficou mais pobre, o Céu ganhou uma estrela brilhante e o menino que cresceu (mesmo não querendo) até homem, ficou triste e chorou... de sede!
Dá acesso a uma casa modesta, embora à sua volta tenham crescido cogumelos de cimento! Um portão que em tempos se abria todos os dias, mais recentemente só se abria às vezes e a partir de agora não mais voltará a abrir...
10 comentários:
Eis duas coisas em que o ser humano é muito bom: em adiar-se e em arrepender-se...
Obrigada por mais este excelente estímulo à reflexão!
Um abraço
Um poema roubado ao quotidiano.
L.B.
Muito bonito o texto. Deixou-me com a lágrima no canto do olho.
Beijinhos
Também vive na minha memória, uma D. Maria e um portão branco que nos franqueava a entrada para nos encher os bolsos com rebuçados depois de lhe pedirmos água.
Lembro-me que começou por acaso, num dia de calor em que tínhamos realmente sede e depois, essa era a desculpa para os rebuçados com que ela nos adoçava a alma.
Nunca mais vi essa senhora, estamos tão longe... no tempo e no espaço.
Hoje, aqui, voltei a relembrá-la através deste texto que me comoveu às lágrimas.
Ainda há pouco, alguém que agora também é estrela lá no alto a brilhar, dizia:
" Não deixem nada por dizer, nada por fazer.. "
...e a nós, por sermos surdos, cresce-nos este amargo de boca de vez em quando.
Um beijo
(Já tinha saudades dos teus textos.)Não deixes para amanhã...
Um beijo cheio de sol Sofá*
Nesse longínquo tempo em que as crianças podiam ir à escola sózinhas,podiam brincar na rua sem o perigo de algum pedófilo as levar.Nesse tempo em que se era realmente criança, em que sabíamos brincar , em que, qualquer coisa se transformava um brinquedo nas mãos das crianças.
Tempos em que havia um mimo dos mais idosos para as crianças, em que elas os respeitavam.
É normal que as coisas boas fiquem na nossa lembrança e não as esqueçamos.Isso faz-nos reviver momentos felizes da nossa infância e juventude.
Por vezes vamos adiando certas acções que devíamos praticar, de dia para dia. Um dia poderá ser tarde demais!
Neste caso foi. A criança cresceu. A idosa morreu.
Um destino certo para todos nós, que ninguém pode escolher ou adiar.
Para os que ficam restam as saudades, as memórias.
Para nós, que as lemos, elas fazem-nos lembrar alguns momentos passados. Por momentos voltámos a ser crianças.
Comoveu-me esta história.
Triste mas lindíssimo texto.
Abraço
Tão lindo...
Beijinhos
Memórias de infância...quem não as tem??
Dos rebuçados, do pão doce... que saudades desses tempos....
Um texto lindo e comovente...
Beijos, abraços
Marta
Lição a retirar:
Não esperar pelo amanhã. Devemos fazer acontecer.
Beijos.
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