Este tempo fresco pela manhã que nos bate na cara quando saímos para a rua recorda-me os idos da escola, mais propriamente quando andava no 8º ano. Havia uma quinta misteriosa por trás da escola, separada por um muro de pedra alto, com árvores centenárias a fazerem fronteira com o mundo exterior e - dizia-se - com muitas estátuas espalhadas no interior da quinta.
Os 14 anos são danados: a aventura falava mais alto, reunimos um grupinho e arranjámos maneira de saltar o muro numa manhã de quase chuva miudinha meio nublada. Sabíamos da fama do caseiro que teria uma espingarda e vários cães de dentes aguçados. Mas nos primeiros metros não vimos nem ouvimos nada. Alguém deu um grito abafado quando demos de caras com uma estátua... e depois outra, e outra!
Não fomos para o centro da quinta. Contornámos pelas veredas exteriores, em fila indiana, mudos de sons, só deixando sussurrar o restolhar das folhas secas e húmidas que forravam o chão de terra. Alguns minutos depois chegámos ao outro extremo da quinta e demos com uma pequena casa. A única porta estava fechada mas com um trinco precário, nada que fizesse o nosso líder - o Coelho - esmorecer... um empurrão e a porta abriu: entrámos à cautela e lá dentro havia móveis muito velhos rasgados pela humidade. Dentro dos móveis descobrimos livros, alguns com datas de 1800 e qualquer coisa. pareciam romances ou novelas, com palavras de um português antigo. As capas eram gravuras coloridas e havia muitos livros repetidos. Mas a maior parte deles estavam em muito mau estado, tal a humidade a que estiveram sujeitos com o passar das décadas. O Coelho distribuiu 2 ou 3 livros por cada um, os outros ficaram lá.
Foi nessa altura que se ouviu alguém a vociferar acompanhado de ladrar de cães. Só tivemos tempo de agarrar nas nossas sacolas e correr... a bom correr! Acabámos por saltar o muro para fora noutro local, alguns ficaram todos arranhados mas a salvo. Escondemos os livros num buraco do muro até ao dia seguinte.
Ainda hoje guardo os livros que trouxe de lá. A quinta misteriosa está dividida em duas: a parte classificada, agora pertença da Câmara Municipal e aberta ao público, a outra parte urbanizada. No lugar da antiga casita dos livros está agora a imponente biblioteca municipal. Quanto aos aventureiros... o Coelho desapareceu há uns anos vítima dos maus caminhos por que optou; o Jaime trabalha no cinema da Câmara, o Nelo foi para os EUA, o Manel acho que também, o Formiga deve ter ido formigar para outro lado, o Canina nunca mais piscou os olhos por aqui (ele piscava os olhos algumas 3 vezes por segundo), o Fraústo - meu colega de carteira - é um alto quadro bancário, o Mário também trabalha num banco, o Diamantino (o meu grande amigo daqueles tempos) também deve andar por aí, e... havia outros mas a memória já lá não vai!
E isto tudo porque hoje o amanhecer cheirava a chuva miudinha...
8 comentários:
Olá!
Grande aventureiro que eras!;)
Quando somos mais novos fazemos cada coisa!;) Mas é muito bom quando nos lembramos e, quando uma coisa tão simples como a chuva, nos faz lembrar tempos passados!
Gostei muito da história, fiquei foi intrigada quanto aos livros que te calharam, quais foram?
Beijinhos
Olá, Ana!
Os livros eram do tipo novelas, a literatura de cordel da altura que até o Camilo Castelo Branco escreveu, um tipo de leitura com muita procura na altura porque as mulheres passavam muito tempo em casa e não haviam grandes distracções.
Bem lindo este teu belo texto, Alex! Uma descrição bem sentida e que nos faz também viver as tuas aventuras...na Quinta da Fidalga, ou estou enganada? Uma Quinta encantada e encantadora, onde gosto de ir muitas vezes e onde o Outono tem um sabor especial!
Alexandre
O olfacto tem esse poder enorme, de desencadear um conjunto de sensações que nos projectam de imediato para um tempo e um lugar guardados na memória. Atrás dessa recordação vêm outras em catadupla e tantas vezes é através delas que percebemos e saboreamos o que já andámos "pra aqui chegar" ( como diz José Mário Branco.
Um beijinho
Caro amigo, belo texto que me fez recordar tempos passados...Espectacular....
Um abraço
Memórias olfactivas que nos transportam para os tempos, revivendo-os. E trazem saudades. Oh se trazem.
Belo texto.
Bj
O cheiro a terra molhada leva-nos invariávelmente á infancia. Pés descalços, caminhava sobre o gelo .Não havia frio que me parasse. Gosto tanto dos cheiros da natureza, e gosto tanto de ti. Beijinhos Alex.
Recordações que marcam e resultam num post muito interessante !
Gostei de estar sentada no teu sofá e ouvir a tua história !
Se passares para a minha casa, empurra a porta e entra...
Beijinhos
Verdinha
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